Antonio Quinto

Financiamento: a questão essencial do Sistema IPE Saúde

Tudo que se relaciona com a saúde dos indivíduos é sempre um assunto polêmico porque se trata, acima de tudo, da preservação da vida. Consequentemente, as discussões tendem a ser calorosas e cheias de emoções, o que significa dizer que a racionalidade ocupa um espaço exíguo. Isso não é diferente quando se discute planos de saúde.

O setor de planos de saúde é reconhecidamente de alto risco onde as instituições trabalham em um ponto de equilíbrio instável, ou seja, a qualquer momento poderão surgir fatos/eventos imprevisíveis que reduzam ou impeçam a viabilidade do negócio. No caso do IPE Saúde, um sistema categorizado como de autogestão, possui um perigo adicional – uma clientela cativa que tende a ampliar a proporção de indivíduos com 59 anos ou mais de idade. Isso significa maior morbidade e, por conseguinte, maior utilização de serviços. Isso significa maiores custos. Quanto mais envelhecida a carteira, maior a sinistralidade. Por conta disso, a solvência [1] de um plano de saúde deve ser uma questão de extrema relevância, a qual depende de diversos fatores, entre os quais destacam-se: política de reajuste de salário dos servidores, forma de contribuição para o plano, gestão específica do plano, mudanças no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [2], demandas judiciais, aspectos demográficos e epidemiológicos dos usuários.

Existe uma Instrução Normativa do IPE Saúde que determina o marco da sinistralidade em 85%, ou seja, que o valor correspondente a esse percentual seja o limite dedicado ao pagamento dos prestadores, enquanto o restante deve ser aplicado nas atividades de administração e atualização do sistema como um todo – pessoal, instalações e equipamentos. Há alguns anos o Sistema IPE Saúde atua com uma sinistralidade acima de 100%. Isso expressa a dificuldade de cumprir obrigações contratuais com os prestadores e fornecedores, assim como o constrangimento causado aos usuários que, em variados momentos, encontram empecilhos para receber a assistência necessária.

O IPE Saúde se encontra em uma encruzilhada: os custos se elevam anualmente enquanto os salários dos servidores não são reajustados na mesma taxa da inflação, sendo que na área da saúde esse índice é sempre maior que a média geral. Isso é um indicativo da necessidade de um ajuste estrutural profundo a fim de preservá-lo. A comunidade gaúcha, portanto, encontra-se diante de uma escolha difícil: extinguir ou manter o plano. É necessária uma discussão pública sobre o seu destino, devendo ser envolvidos os vários segmentos interessados.

Uma eventual extinção do Sistema IPE Saúde é a decisão mais controversa e perturbadora. Necessariamente o governo precisará encontrar uma alternativa que amenize o impacto de uma medida tão drástica. Por outro lado, manter o plano implica em promover um aumento da contribuição, tanto dos usuários quanto do governo, que não será pequena em função da enorme defasagem gerada entre os valores arrecadados e os que precisam ser pagos aos prestadores pelos serviços utilizados. Mantida a trajetória de custos crescentes do mercado, a vinculação da maior parte dos usuários do plano a um percentual do salário de contribuição, assim como a não contribuição dos dependentes, o Sistema avança, implacavelmente, para a insolvência.

Anualmente a ANS, órgão regulador e fiscalizador do sistema de saúde suplementar, estabelece o percentual de reajuste dos valores dos planos. No caso do IPE Saúde, não há qualquer regra que defina revisões e reajustes nos valores remuneratórios. Isso origina, rigorosamente, um ambiente de defasagem que se acumula ao longo dos anos e dá elementos consistentes para reclamações dos prestadores. Mesmo ocorrendo reajuste de salário dos usuários, isso não altera o comportamento das despesas. Ou seja, a receita continua abaixo das despesas estabelecidas pelos prestadores. Consequentemente, forma-se uma pressão junto ao IPE Saúde a partir dos prestadores que almejam soluções de curto prazo (que são efêmeras), enquanto a crise estrutural do Sistema IPE Saúde pressupõe medidas de médio e longo prazos. Esse descompasso entre as necessidades dos prestadores e fornecedores e as possibilidades de pagamento do Sistema IPE Saúde eleva o grau de insatisfação dos primeiros e desnorteia os gestores da autarquia.

O aporte extraordinário do governo ao Sistema IPE Saúde, medida aplicada há algum tempo, devido aos insistentes e dramáticos reclamos dos prestadores, somente adia a próxima crise. De fato, é indispensável uma reformulação do modelo de financiamento do Sistema IPE Saúde, além de uma reestruturação organizacional e informacional (já em curso) associada a aplicação de um novo modelo assistencial que associe medidas de atenção primária com ações de média e alta complexidade articuladas com prestadores preferenciais.


 [1] Solvência de um plano de saúde é a capacidade de honrar os compromissos referentes à assistência à saúde previstos em contratos, como também apresentar solidez patrimonial que garanta a continuidade de suas atividades (Bastos, LL. Insolvência das operadoras de planos de saúde brasileiras: uma análise empírica do efeito de fatores internos e externos à firma. Vitória, 2019).
[2] Embora o Sistema IPE Saúde não esteja sob a jurisdição da ANS, as regulamentações efetuadas por essa agência influenciam o comportamento dos prestadores em relação à autarquia.

 

Antonio Quinto

Médico psiquiatra, Mestre em Administração pela UFRGS, Especialista em Avaliação de Sistemas e Serviços de Saúde, Membro do Conselho Editorial da Revista de Administração em Saúde da Associação Paulista de Medicina. Fellow do Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde (CBEXs). Avaliador Sênior do Instituto de Acreditação Hospitalar e Certificação em Saúde - IAHCS/ONA e professor convidado dos cursos de especialização do IAHCS/Fasaúde e da Faculdade Unimed, de Belo Horizonte (MG). Diretor de Provimento de Saúde do IPE-Saúde.

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